Pejotização: STF ‘liberou geral’ e CLT agora é
facultativa
Em uma das decisões mais absurdas desde 1988, Supremo liquida competência da Justiça do Trabalho
Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Na semana em que a Constituição completou 35 anos, o Supremo Tribunal Federal
desferiu um golpe na classe trabalhadora do Brasil, tornando os direitos
sociais do art. 7º facultativos. De quebra, em clara afronta à literalidade do
art. 114 da Constituição, o STF ainda liquidou a competência da Justiça do
Trabalho para julgar fraudes ao contrato de trabalho, restringindo fortemente o
acesso dos trabalhadores ao órgão judiciário criado há 80 anos para
protegê-los.
Em uma série de decisões proferidas para supostamente preservar o entendimento
da corte sobre terceirização, as duas Turmas do STF fixaram entendimento de que
trabalhadores contratados por meio de “pessoas jurídicas” por eles constituídas
não podem questionar a legalidade da contratação na Justiça do Trabalho. O
ministro Edson Fachin, o único a manter a lucidez diante de tamanho disparate
(além da recém-aposentada ministra Rosa Weber), dias atrás “ressalvou o seu
entendimento” e tristemente capitulou, curvando-se às maiorias formadas nas
duas Turmas da corte sobre o tema.
Esse golpe indisfarçado contra os direitos sociais dos trabalhadores foi
engendrado lentamente nos bastidores do Supremo. Começou quando a corte julgou
ações diretas e recursos extraordinários sobre a constitucionalidade da nova
lei de terceirização e de dispositivos sobre o tema constantes na lei da
reforma trabalhista e em outras leis especiais. Recordemos: o que estava sendo
discutido naqueles processos era única e simplesmente a constitucionalidade das
normas que permitiram a terceirização em atividades-fim. A primeira grande
manobra do tribunal foi fixar o precedente relativo a esses casos nos termos do
Tema 725, conferindo-lhe teor muito mais abrangente do que os fatos subjacentes
a hipótese submetida ao tribunal:
“É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre
pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas
envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.
Observem, leitores: o enunciado do Tema é muito mais amplo do que a
controvérsia levada ao Supremo. Os ministros incluíram no verbete,
capciosamente, a expressão “ou qualquer outra forma contratual”, o que não era
objeto de nenhum dos processos que resultaram no precedente. Mas o pior estava
por vir: em uma série de “reclamações constitucionais” para supostamente manter
a autoridade dos julgamentos proferidos nos casos de terceirização, os
ministros, de forma aparentemente articulada, foram aplicando o Tema 725 a
hipóteses de contratação civil de trabalhadores que não tinham nada a ver com
“terceirização em atividade-fim”.
Especialmente, aplicaram o precedente para nele incluir uma das formas
contratuais civis mais utilizadas por empregadores que querem fraudar o
contrato de trabalho: a chamada “pejotização”, na qual com frequência um
empregado é instado a constituir uma pessoa jurídica para poder ser admitido, com
a finalidade de travestir a relação de emprego sob a roupagem de um aparente
contrato civil.
Será possível que os ministros do Supremo não saibam que “terceirização” e
“pejotização” são formas contratuais completamente distintas no mercado de
trabalho brasileiro? Fato é que o STF, grosseiramente, não fez qualquer
“distinguishing” entre elas.
A terceirização pressupõe a existência de uma organização empresarial com uma
especialidade (empresa de vigilância, asseio, de programação de software, ou
qualquer outra), detentora de know-how, que contrata empregados para prestar
serviços para ou dentro de outras empresas, supervisionando e dirigindo o seu
próprio pessoal.
Em casos em que há terceirização, o empregado costumava processar na Justiça do
Trabalho seu empregador imediato (“terceiro”) e a empresa contratante dos
serviços onde trabalha, buscando um vínculo com essa e a responsabilidade
subsidiária da terceirizada. No caso de “pejotização” isso nunca ocorre, pois o
empregado jamais buscaria responsabilizar a sua própria pessoa jurídica, ou
seja, processar a si mesmo! Será que é tão difícil de entender a diferença?
A “pejotização” é uma simples projeção jurídica e formal da pessoa do
trabalhador (supostamente) autônomo, que presta serviços diretamente a um contratante,
sem possuir para isso uma estrutura empresarial. Essa pessoa jurídica é quase
sempre unipessoal e tem como endereço a própria residência do trabalhador, não
possui escritórios, empregados ou equipamentos. Quando há sócio ou sócios, em
geral se trata de parente que “emprestou o nome”. Não há, repita-se, um
“terceiro” na relação, apenas a empresa contratante e a pessoa “jurídica” do
profissional contratado que se confunde com o próprio trabalhador.
Quem minimamente conhece a realidade do mercado de trabalho brasileiro sabe que
a formação de uma “pessoa jurídica” no momento da contratação frequentemente é
uma exigência de certos empregadores para mascarar a relação de emprego, e com
isso sonegar direitos trabalhistas, previdenciários e tributários. Um mero
ardil e só ingênuos o desconhecem (não deve haver ingênuos no STF, que eu
saiba). Para coibir esse tipo de fraude, somente possível devido à assimetria
de poder econômico nas relações de trabalho, a CLT estabelece no seu artigo 9º
que “são nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de
desvirtuar, impedir ou fraudar os preceitos contidos na presente Consolidação.”
A Justiça do Trabalho, como sempre fez nos últimos 80 anos e como lhe determina
a Constituição de 1988, apreciava esses processos sob o ângulo dos elementos
probatórios fáticos: afinal, a relação mantida era de autonomia ou
subordinação? E, com observância ao devido processo legal, o juiz do trabalho,
verificando a presença dos requisitos do art. 3º da CLT, decretava ou não a nulidade
do contrato formal, já que a pedra angular do Direito do Trabalho é o princípio
da primazia da realidade sobre a forma. O pacto laboral, de acordo com a
doutrina juslaboralista em todo o mundo ocidental (inclusive nos EUA), é um
“contrato-realidade”. Quero dizer, essa doutrina vale em todo mundo civilizado,
menos, agora, no Brasil, depois da “brilhante” construção jurisprudencial do
Supremo.
É preciso observar que o STF começou a cassar essas decisões via reclamação
constitucional sem que nenhuma alteração no texto da Constituição ou da
legislação tivesse ocorrido. O Congresso havia apenas permitido a terceirização
em atividade-fim. Não revogou o art. 3º ou o art 9º da CLT. Nada tratou sobre
contratação de trabalho por meio de pessoas jurídicas, falsas sociedades de
0,1% ou franquias de fachada.
Esse “cancelamento” do princípio da primazia da realidade já é em si uma
abominação jurídica insustentável. Mas o STF foi ainda mais longe, entendendo
que os contratos civis celebrados por trabalhadores têm uma presunção de
validade que só pode ser afastada pela Justiça Comum! Isso mesmo, acredite se
puder, caro leitor. Uma mudança legislativa sobre terceirização teria alterado
a competência constitucional da Justiça do Trabalho! O STF praticou um caso de
interpretação da Constituição conforme a lei. Lei, aliás, que sequer tratou do
tema. Sim, ninguém no Congresso sequer aventou essa hipótese de supressão de
competência da Justiça do Trabalho, basta ver a exposição de motivos e os
debates em torno da malsinada reforma trabalhista.
Ora, o texto do art. 114 da Constituição fala claramente que compete à Justiça
do Trabalho julgar ações “oriundas da relação de trabalho”. Se um trabalhador
(eu disse trabalhador, não empregado), vamos dizer um radiologista (caso da
reclamação julgada na semana passada por Zanin), é contratado como pessoa
jurídica para trabalhar dentro de um hospital e se, depois de desligado, ele
alega fraude ao contrato e busca o reconhecimento de direitos trabalhistas, por
que motivo haverá de ajuizar a ação na Justiça Comum? A seguir o obscuro
entendimento do STF, o juiz da Justiça Estadual haverá de aplicar o art. 9º da
CLT para verificar se houve fraude? Onde está fixada essa competência
trabalhista da Justiça Estadual?
Por acaso houve alguma alteração no art. 114 da Constituição? Aliás, esse
artigo repete em linhas gerais o que constava nas Constituições de 1946 e 1967.
A Justiça do Trabalho sempre julgou esses casos de reconhecimento de vínculo de
emprego, repito, durante todos os seus 80 anos e nunca ninguém questionou essa
competência, nem sequer os mais acerbos e duros críticos da jurisdição
trabalhista, nem mesmo os advogados patronais mais ferozmente antitrabalhador e
antissindicato! Até eles devem estar corados e sentindo aquela “vergonha alheia”
dos criadores desta tese.
O STF, simplesmente do nada, invocou um precedente sobre terceirização em
atividade-fim para dar um cavalo-de-pau hermenêutico jamais visto desde 1988,
com o qual é suprimida uma das principais competências da Justiça do Trabalho.
Isso não é sequer uma “interpretação razoável”, é uma interpretação contra a
letra da Constituição e tem um nome claro: abuso de poder. Não é nem o caso de
dizer que se trata de um ativismo judicial pelo qual o STF “legisla”. O STF
está agindo como poder constituinte derivado. É o “Estado de Coisas
Inconstitucional” dentro do próprio STF. Só não cabe ADPF…
Além da desmoralização do STF como guardião dos direitos sociais da
Constituição, quais outras consequências advêm dessa decisão aberrante?
Primeiro: a assinatura de carteira de trabalho passa a ser opcional (“CLT
flex”), bastando que o empregador condicione a contratação do trabalhador à
formação de uma pessoa jurídica. Assinado esse papel, não poderá mais o
contratado questionar sua condição de empregado na Justiça do Trabalho. Quando
muito, restará ao lesado ajuizar uma ação na Justiça Comum, pagando as suas
caras custas e emolumentos, submetendo seu caso (regido pelo processo civil) a
um juiz que sequer foi treinado para examinar lides trabalhistas.
Segundo: essa decisão gerará um déficit enorme na previdência social, pois na
modalidade “prestação de serviços por pessoa jurídica” as contribuições são bem
menores e os benefícios distintos. Haverá uma perda enorme de receita,
especialmente com as indenizações por acidente de trabalho, já que na
modalidade de contrato de pessoa jurídica não há contribuição do contratante
para Seguro de Acidentes do Trabalho.
Terceiro: ao introduzir a “CLT flex” e proibir a Justiça do Trabalho de exercer
jurisdição em casos de fraude, o STF promove incentivo para que todas as
empresas contratem trabalhadores por PJ, esvaziando os direitos sociais dos
trabalhadores previstos no art. 7º, além de incentivar também a sonegação
fiscal e previdenciária.
Quarto: ao permitir a contratação ilimitada por pessoa jurídica, o STF retira
da base de representação do sindicato os trabalhadores “pejotizados”,
aniquilando o direito de representação sindical e sufocando as fontes de
financiamento dos sindicatos.
Quinto: o Brasil passará a descumprir frontalmente diversas normas previstas
nas Convenções da OIT e da OEA, pois a quase totalidade dos direitos sociais
ali assegurados (inclusive o de sindicalização) só são passíveis de
reconhecimento mediante a formalização de um contrato de trabalho. É certo que
o Estado brasileiro será denunciado internacionalmente perante as instâncias
competentes contra essa supressão de direitos trabalhistas praticada de forma
oblíqua, irresponsável e inconsequente pelo STF.
Sexto: Ao estabelecer que os contratos civis de trabalho não podem ser
escrutinados em casos de fraude na Justiça do Trabalho, o STF impede que o
Ministério Público do Trabalho investigue e reprima tais fraudes, já que o
órgão não tem atribuição para atuar na Justiça Comum. Haverá, assim, mais incentivo
à “pejotização do mercado de trabalho”.
Francamente, eu me pergunto se os excelsos ministros, para além da violação
literal ao texto da Constituição, refletiram sobre essas questões
“consequencialistas” antes de tomar essa decisão sem pé nem cabeça.
Para concluir, é muito lamentável que essa violência inaudita do STF contra a
classe trabalhadora do país se dê sob os auspícios da presidência do
autoproclamado “humanista” Luís Roberto Barroso, um dos “pais” dessa teoria de
que os contratos civis que mascaram relação de trabalho não podem mais ser
questionados. Estranho humanista esse, para quem, ao que parece, os direitos
sociais dos trabalhadores não integram os direitos humanos, sendo
“facultativos”.
CÁSSIO CASAGRANDE – Doutor em Ciência Política, professor de Direito
Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal
Fluminense (UFF). Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de
Janeiro (licenciado). Visiting Scholar na George Washington University (2022)
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